Nas margens do Mediterrâneonão se vê um palmo de terraque a terra tivesse esquecidode fazer converter em pedra.Nas margens do MediterrâneoNão se vê um palmo de pedraque a pedra tivesse esquecidode ocupar com sua fera.Ali, onde nenhuma linha pode lembrar, porque mais doce,o que até chega a parecersuave serra de uma foice,não se vê um palmo de terrapor mais pedra ou fera que seja,que a cabra não tenha ocupadocom sua planta fibrosa e negra.
1
A cabra é negra. Mas seu negronão é o negro do ébano douto(que é quase azul) ou o negro ricodo jacarandá (mais bem roxo).O negro da cabra é o negrodo preto, do pobre, do pouco.Negro da poeira, que é cinzento.Negro da ferrugem, que é fosco.Negro do feio, às vezes branco.Ou o negro do pardo, que é pardo.disso que não chega a ter corou perdeu toda cor no gasto.É o negro da segunda classe.Do inferior (que é sempre opaco).Disso que não pode ter corporque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturnoo negro da cabra é solar.Não é o da cabra o negro noite.É o negro de sol. Luminar.Será o negro do queimadomais que o negro da escuridão.Negra é do sol que acumulou.É o negro mais bem do carvão.Não é o negro do macabro.Negro funeral. Nem do luto.Tampouco é o negro do mistério,de braços cruzados, eunuco.É mesmo o negro do carvão.O negro da hulha. Do coque.Negro que pode haver na pólvora:negro de vida, não de morte.
3
O negro da cabra é o negroda natureza dela cabra. Mesmo dessa que não é negra,como a do Moxotó, que é clara.O negro é o duro que há no fundoda cabra. De seu natural.Tal no fundo da terra há pedra, no fundo da pedra, metal.O negro é o duro que há no fundoda natureza sem orvalhoque é a da cabra, esse animalsem folhas, só raiz e talo,que é a da cabra, esse animalde alma-caroço, de alma córnea,sem moelas, úmidos, lábios,pão sem miolo, apenas côdea.
4
Quem já encontrou uma cabra que tivesse ritmos domésticos?O grosso derrame do porco,da vaca, do sono e de tédio?Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade?Tal o cão, o gato, o cavalo,diletos do homem e da arte?A cabra guarda todo o arisco,rebelde, do animal selvagem,viva demais que é para seranimal dos de luxo ou pajem.Viva demais para não ser,quando colaboracionista,o reduzido irredutível,o inconformado conformista.
5
A cabra é o melhor instrumentode verrumar a terra magra.Por dentro da serra e da secanão chega onde chega a cabra.Se a serra é terra, a cabra é pedra.Se a serra é pedra, é pedernal.Sua boca é sempre mais duraque a serra, não importa qual.A cabra tem o dente frio,a insolência do que mastiga.Por isso o homem vive da cabramas sempre a vê como inimiga.Por isso quem vive da cabrae não é capaz do seu braçodesconfia sempre da cabra:diz que tem parte com o Diabo.
6
Não é pelo vício da pedra,por preferir a pedra à folha.É que a cabra é expulsa do verde,trancada do lado de fora.A cabra é trancada por dentro.Condenada à caatinga seca.Liberta, no vasto sem nada,proibida, na verdura estreita.Leva no pescoço uma cangaque a impede de furar as cercas.Leva os muros do próprio cárcere:prisioneira e carcereira.Liberdade de fome e sededa ambulante prisioneira.Não é que ela busque o difícil:é que a sabem capaz de pedra.
7
A vida da cabra não deixalazer para ser fina ou lírica(tal o urubu, que em doces linhasvoa à procura da carniça).Vive a cabra contra a pendente,sem os êxtases das decidas.Viver para a cabra não ére-ruminar-se introspectiva.É, literalmente, cavara vida sob a superfície,que a cabra, proibida de folhas,tem de desentranhar raízes.Eis porque é a cabra grosseira,de mãos ásperas, realista.Eis porque, mesmo ruminando,não é jamais contemplativa.
8
O núcleo de cabra é visívelpor debaixo de muitas coisas.Com a natureza da cabraoutras aprendem sua crosta.Um núcleo de cabra é visívelem certos atributos roucosque têm as coisas obrigadasa fazer de seu corpo couro.A fazer de seu couro sola,a armar-se em couraças, escamas:como se dá com certas coisase muitas condições humanas. Os jumentos são animaisque muito aprenderam com a cabra. O nordestino, convivendo-a,fez-se de sua mesma casta.
9
O núcleo de cabra é visíveldebaixo do homem do Nordeste.Da cabra lhe vem o escarpadoe o estofo nervudo que o enche.Se adivinha o núcleo de cabrano jeito de existir, Cardozo,que reponta sob seu gestocomo esqueleto sob o corpo.E é outra ossatura mais forteque o esqueleto comum, de todos;debaixo do próprio esqueleto,no fundo centro de seus ossos.A cabra deu ao nordestinoesse esqueleto mais de dentro:o aço do osso, que resistequando o osso perde seu cimento.
*
O Mediterrâneo é mar clássico,com águas de mármore azul.Em nada me lembra das águassem marca do rio Pajeú.As ondas do Mediterrâneoestão no mármore traçadas.Nos rios do Sertão, se existe,a água corre despenteada.As margens do Mediterrâneoparecem deserto balcão.Deserto, mas de terras nobresnão da piçarra do Sertão.Mas não minto o Mediterrâneonem sua atmosfera maiordescrevendo-lhe as cabras negrasem termos da do Moxotó.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Vale a pena Ler de novo
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