domingo, 29 de março de 2009

Vale a pena Ler de novo

Assombração
Heloisa Seixas

"Clara deu uma risada nervosa quando ouviu a insistência de Clarice ao telefone:
— Eles fazem questão de que você vá. Querem que você conheça o sítio mal-assombrado.
— Mas... você tem certeza de que vai ter lugar para todo mundo?
— indagou. Sabia que Clarice iria com os dois filhos. Ela mesma teria de levar seu menino, pois o ex-marido estaria viajando no fim de semana. Contando com os donos do sítio e mais um casal convidado, que ia com o filho adolescente, seriam ao todo dez pessoas.
— Talvez fosse melhor nós irmos num fim de semana em que eles não tenham outros convidados — argumentou.
— Não seja boba, Clara. Tem lugar, sim. Senão eles não teriam insistido tanto. Não adianta vir com desculpas. O que há? Está com medo?
— Claro que não! Você sabe muito bem que eu não acredito nessas coisas
— retrucou.Não, não era medo. Sentia uma inquietação. Sim, estava inquieta, tinha de admitir. Como se pressentisse a aproximação de um perigo. Mas sabia que isso era uma bobagem. O que poderia haver, afinal? Seu filho, Pedro, de sete anos, estava louco para ir. E ela própria ficara curiosa com as histórias de fantasmas.Vinha ouvindo as tais histórias havia meses, desde que conhecera Clarice. Os olhos castanhos da amiga brilhavam de excitação quando ela as contava.Clarice. Era engraçado pensar que só a conhecia havia... quantos meses? Junho, julho, agosto, setembro. Quatro. Só quatro meses. Sentia como se fossem amigas de infância. As crianças também. Pedro e os dois meninos se entendiam e desentendiam como irmãos. E de certa forma o eram. Pelo menos Pedro e Paulo. Os dois, o filho de Clara e o filho mais novo de Clarice, haviam nascido na mesma época, com uma diferença de apenas dois dias. Nada demais, não fosse por um detalhe, descoberto por acaso: um dia em que Clarice aparecera com a certidão de nascimento de Paulo, as duas viram, com grande surpresa, que o nome da testemunha no documento era do ex-marido de Clara, pai de Pedrinho. Como é de praxe em cartórios, os pais que estão na fila do registro assinam como testemunhas uns dos outros. A coincidência engraçada era que os ex-maridos de Clara e Clarice tivessem ido ao mesmo cartório, no mesmo dia e na mesma hora para registrar os filhos, sete anos antes de elas duas se conhecerem.Clara sorri, lembrando-se do espanto de Clarice ao fazer a descoberta. Sempre tão engraçada, tão alegre, Clarice prendia a atenção de todos onde chegava. Era uma mulher bonita, de cabelos. muito negros, pele morena aveludada como a superfície de um pêssego, olhos de um castanho líquido que pareciam a todo momento umedecer seus longos cHios. Uma pessoa tão doce... Pena que se metesse em tantas loucuras. A própria Clarice lhe contava suas aventuras, suas noites de bebedeiras e drogas, a sucessão interminável de namorados, como se quisesse se vingar dos dez anos de casamento que tanto a haviam atormentado. Errava pelos bares à noite em companhia de pessoas que pareciam dispostas apenas a sugá-la, aproveitando-se de sua bondade, gravitando em torno dela como vampiros sedentos. Bebia demais e quanto mais se misturava àquela gente mais compulsiva se tornava. Drogava-se com freqüência, às vezes mesmo subindo morros com os companheiros de noitada, em busca de droga. Clara temia por ela, pelas crianças. Procurava dar-lhe conselhos, mas de nada adiantava. Havia nela, naquela mulher tão delicada, uma poderosa sede de autodestruição, que a subjugava. O tal casal dono do sítio mal-assombrado era talvez um dos poucos de seu círculo de amigos, além da própria Clara, que não vivia metido em loucuras.O sítio. O sítio mal-assombrado. Ia afinal conhecê-lo. Clarice falava tanto nele... Clara não podia negar que estava curiosa. Outro dia, num jantar em casa de amigos comuns, o sítio mal-assombrado fora o assunto da noite. Clara lembrava-se bem. Todos falavam com naturalidade dos fantasmas, parecendo mesmo divertir-se com a situação. Ninguém tinha medo. Clara tampouco. Na verdade ouvia aquilo com grande dose de incredulidade. Mas sentira uma sensação desagradável ao ouvir dos donos do sítio a explicação para tanta assombração: segundo eles, o antigo dono do lugar se suicidara lá, enforcando-se junto a uma bela cachoeira existente dentro da propriedade.Clara arrepiara-se ao ouvir aquilo. Tinha horror a enforcamentos. Desde muito pequena, quando ouvia na escola as histórias de Tiradentes, fixava na professora os olhinhos muito abertos, sentindo um nó na garganta, como se uma invisível corda ali lhe apertasse. Perguntara ao casal como eles tinham ficado sabendo daquilo. Por intermédio dos próprios herdeiros, de quem haviam comprado a propriedade, disseram. Clara engolira em seco.Eram muitas, as histórias. Todos ou quase todos os amigos do casal que já haviam passado dias no sítio tinham um caso para contar. Um rapaz, de nome Caio, relatara que certa vez vira uma mulher agachada chorando num canto da sala. Ia passando distraído quando dera com ela. Voltara-se para olhar uma segunda vez, a fim de se certificar do que estava vendo, e ela já havia desaparecido. Alguém perguntou se ele não tinha bebido muito naquela noite e ele teve de admitir que sim. Todos riram.Outra amiga relatara sua experiência, dizendo ter acordado no meio da noite com um infernal barulho de pratos e panelas na cozinha. Como muitas pessoas estavam hospedadas no sítio naquele fim de semana, levantara-se furiosa pensando em reclamar com a turma que fazia o barulhento lanche da madrugada — e ao chegar ao fim do corredor se deparara com a cozinha silenciosa e vazia.Havia também o caso do suspiro. Este se dera com Pablito, rapaz solteiro e mulherengo que era velho freqüentador dos fins de semana assombrados. Na ocasião, ainda se vangloriava de ser um dos poucos que jamais tinham visto uma alma penada na casa. Certa noite, já estava deitado sozinho no quarto, com as luzes apagadas, quando ouvira, a seu lado na cama de casal, um suspiro. Um suspiro profundo e sentido, um suspiro de mulher. Logo imaginara que alguma das moças hospedadas na casa fora refugiar-se a seu lado. Levantara-se, intrigado. Fora, às apalpadelas, até a parede junto à porta em busca do interruptor, já que o abajur estava sem lâmpada. Acendera a luz. A cama estava vazia. E no mesmo instante ele se lembrara, sentindo-se gelar da cabeça aos pés, de que havia trancado a porta por dentro antes de se deitar. Desde então nunca mais duvidara das histórias de assombração.Clara ouvira aquelas histórias com curiosidade mas, por um motivo ou por outro, fora adiando a ida ao sítio. Agora, ao que parecia, chegara a hora. Tempo de enfrentar os fantasmas, pensou, com um sorriso de incredulidade. Dali a três dias.Já lhe tinham dito que o sítio era um local belíssimo, encravado num vale em meio a montanhas, mas Clara se surpreendeu. Que lugar! Assim que os carros deixaram a Rio-Petrópolis, tomando à direita um caminhozinho de terra, todo esburacado, ela sentiu como se penetrassem um mundo intocado pelo homem. O caminho de terra, que só dava passagem para um carro de cada vez, cortava a mata fechada, com cipós pendurados. Nas margens, tapetes de marias-sem-vergonha e no ar um cheiro penetrante de folhas apodrecidas.Era úmido ali. A mata quase se fechava sobre a estradinha e, como ainda havia muita névoa, o caminho se tornava mais sombrio. Fazia frio, muito frio. Fecharam as janelas. Vidros embaçados, mal se enxergava o caminho à frente e os três carros seguiam devagar, pelo chão de barro escorregadio. Risadas nervosas cortavam o silêncio.De repente, Clara viu surgir o vale à sua frente, deslumbrante. Era um descampado cheio de sol, cercado de montanhas sombrias por todos os lados. A trilha úmida terminava de repente, desembocando em toda aquela luminosidade que quase cegou.Saltaram. A casa, daquelas antigas, com varandões em arco e janelas pintadas de azul colonial, ficava a um canto, junto a um imenso flamboyant. À frente, estendia-se o gramado, salpicado por troncos com bromélias e alguns arbustos. Era um vale descarnado em meio às montanhas cobertas por mata fechada, num lindo contraste.
— Não parece uma casa mal-assombrada — comentou Clara. Clarice sorriu, sem nada dizer. E a amiga do casal, mãe do adolescente, dando de ombros:
— De noite é que vamos saber.A primeira coisa que fizeram, depois de deixar a bagagem nos quartos, foi sair para conhecer a cachoeira, o lugar mais bonito do sítio, pelo que todos diziam.Do lado esquerdo da casa, havia uma pequena trilha na mata que levava até lá. Um caminho menos sombreado do que a estrada de carro. Ali, a luminosidade penetrava pelo trançado das folhas. Junto à trilha, grandes touceiras de colônias, lírios e xaxins formavam a vegetação.À medida que caminhavam, Clara sentia como se a mata os envolvesse, com seus cheiros de flores e terra úmida, seus murmúrios e zumbidos que se fundiam em uníssono, como uma respiração. Caminharam assim durante algum tempo, até que começaram a ouvir o som das águas. Chegavam ao fim da trilha. A pequena clareira, ornada pelas pedras do regato, foi o ponto onde todos pararam, hipnotizados pela beleza do lugar. A cachoeira era um santuário. Um fio d'água se despejando sobre um laguinho verde-escuro, pequeno e gelado, como um cenário de cinema. Era tudo tão perfeito, tão harmônico e bonito, que o primeiro pensamento de Clara foi que era difícil entender como alguém podia se matar num lugar assim. Arrepiou-se ao pensar nisso."...

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