quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Vale a pena Ler de novo

A falsa tia
Miguel de Cervantes

"Passando por certa rua de Salamanca dois estudantes, manchegos e mancebos, mais amigos da espada e do broquel do que de Bartoldo e Baldo, viram na janela de uma casa e loja de carne¹ uma gelosia; e parecendo-lhes novidade, porque a gente de tal casa, se não se descobria e apregoava não se vendia, querendo-se informar do caso, depararam em sua diligência com um oficial vizinho, paredes meias, que lhes disse:

— Senhores, há uns oito dias vive nesta casa uma senhora forasteira, meio beata e de muita austeridade; tem consigo uma donzela de extremado parecer e brio, que dizem ser sua sobrinha; sai com um escudeiro e duas damas, e segundo tenho julgado é gente de posses e de grande recolhimento. Até agora não vi entrar pessoa alguma da cidade nem de fora para visitá-las, nem saberei dizer de onde vieram para Salamanca; mas o que sei é que a moça é formosa e honesta na aparência, e que o fausto e autoridade da tia não é de gente pobre.

O relato que o vizinho oficial fez aos estudantes provocou-lhes a cobiça de levar a bom termo aquela aventura, porque sendo conhecedores da cidade, e desvendadores de quantas janelas tinham trepadeiras com toucas, em toda ela não sabiam que tal tia e sobrinha houvesse, que hospedassem cursistas em sua universidade, principalmente que viessem a viver em semelhante rua na qual, por ser de tão bom trânsito, sempre se havia vendido tinta, ainda que não da fina: que há casas, em Salamanca como em outras cidades, nas quais vivem sempre mulheres cortesãs, ou por outro nome trabalhadoras ou enamoradas."...

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