sábado, 28 de fevereiro de 2009

O carisma de Hitler


“O problema do carisma de HITLER é de solução relativamente fácil. Em grande medida, correspondia ao que o professor RITTER chama de “fé fanática que esse homem deposita em si mesmo”, e se baseava no conhecido fenômeno que HITLER deve ter percebido desde cedo, a saber, que a sociedade moderna, em sua sombria incapacidade de formar juízos, tomará qualquer indivíduo pelo que ele próprio se considera e diz ser, e irá julgá-lo a partir dessa base. Assim, uma tremenda autoconfiança e extraordinárias manifestações desse autoconfiança hão de inspirar a confiança alheia; as pretensões de genialidade despertam nos outros a convicção de estar lidando com um gênio. É a mera perversão de uma velha e justa regra de toda boa sociedade, segundo a qual cada um deve ser capaz de mostrar o que é e de se apresentar à luz adequada. A perversão surge quando o papel social se torna, por assim dizer, arbitrário, quando a separação da real substância humana é total, quando, de fato, um papel sistematicamente desempenhado passa a ser aceito como a própria substância, sem contestações.Nessa atmosfera, torna-se possível qualquer tipo de impostura, porque parece não ter sobrado ninguém que possa se importar minimamente com a diferença entre fraude e autenticidade. Assim, muitos sucumbem a juízos apoditicamente expressos, porque o tom apodítico os liberta do caos de uma quantidade indefinita de juízos totalmente arbitrários. O ponto crucial é que não só o tom apodítico é mais convincente do que o conteúdo do juízo, como também o conteúdo do juízo, o objeto julgado, deixa de ter qualquer importância As tiradas de HITLER sobre os males do tabaco parecem exercer sobre seus ouvintes o mesmo fascínio de seus discursos sobre NAPOLEÃO I ou suas idéias sobre a história universal. Para avaliar corretamente esse fenômeno do carisma no caso de HITLER, devemos lembrar que, na sociedade atual, não é muito difícil criar uma aura em torno de si mesmo que irá enganar todo e qualquer indivíduo – ou quase todos – que se aproximar de seu raio de influência. Sob esse aspecto, HITLER se comportou como muitos outros charlatães menos talentosos. Desnecessário dizer que, nessas condições, a regra da boa educação que dita que a pessoa não deve se autopromover tem de ser implacavelmente abandonada. Quanto mais a prática vulgar do auto-elogio desenfreado se difunde numa sociedade que, em grande parte, ainda adere às regras da boa educação, tanto maior será seu efeito e tanto mais facilmente a sociedade se convencerá de que apenas um “grande homem” de verdade, que não pode ser julgado pelos critérios normais, seria capaz de criar coragem para romper regras tão sacrossantas como as da boa educação. Em outras palavras, HITLER exercia um fascínio muito maior junto aos generais e outros membros da boa sociedade do que entre os “velhos batalhadores” que, como ele pertenciam à ralé da sociedade.”Mas, no caos geral criado pela incapacidade de formular juízos, a superioridade de HITLER ia muito além do fascínio, do mero “carisma” que pode emanar de qualquer charlatão. A consciência das possibilidades sociais, oferecidas pela moderna incapacidade de julgar, e os meios para explorá-las estavam escoradas no entendimento muito mais importante de que, no caos de opiniões do mundo moderno, os mortais comuns são levados de uma opinião a outra sem entender minimamente o que diferencia uma da outra. HITLER conhecia, pela mais íntima experiência pessoal, o que era aquele turbilhão que arrasta o homem moderno e no qual ele muda diariamente de “filosofia” política ou outra qualquer, dependendo das opiniões que lhe são oferecidas enquanto rodopia indefeso no torvelinho. HITLER é igual aquele jornal que ele próprio descreve: “numa cidade [em que] doze jornais noticiam o mesmo acontecimento, cada um de uma maneira diferente [...] finalmente ele vai chegar à conclusão de que é tudo bobagem”. A diferença entre HITLER e esse leitor de jornal com seu respectivo desespero foi que, um belo dia, HITLER descobriu que, se nos aferrarmos a qualquer uma das opiniões correntes a desenvolvermos com uma coerência “gélida” (como ele gostava de dizer), de alguma maneira tudo vai entrar de novo nos eixos. A verdadeira superioridade de HITLER consistia no fato de que, sob todas as circunstância, ele tinha uma opinião, e essa opinião sempre se encaixava perfeitamente em sua “filosofia” geral. Nesse contexto social (e só nele), a superioridade é de fato potencializada pelo fanatismo, porque os erros óbvios de demonstráveis já não conseguem miná-la. O que se reafirma após a demonstração de um erro é o fato de que a pessoa não só tem opinião como também abraça essa opinião e, portanto, é capaz de formular juízos. E em política, na qual é necessária a ação contínua e, portanto, a contínua formulação de juízos, de fato é corretíssimo e mais vantajoso, em sentido prático, ter um juízo qualquer e seguir um curso de ação qualquer do que não julgar e não agir de forma alguma.”“Não julgar e não agir de forma alguma é uma condição a que muita gente no mundo moderno aspira com a maior devoção. Todavia, o argumento de HITLER de que “um homem num vilarejo [não é capaz] de avaliar as questões vitais que dizem respeito a continentes inteiros”, bem como o argumento de que não se podem esperar entendimento e decisões políticas de um homem desses, da mesma forma como não se pode pôr ao volante de um carro alguém que não sabe dirigir, teve um impacto maior, foi mais convincente na Alemanha do que em outros países. Lá, esse velho e batido argumento dos adversários da democracia tinha o apoio de uma tradição excepcionalmente forte de passividade política e de uma tradição da mesma forma vigorosa de trabalho e produção. Juntas, essas duas tradições conferiam plena plausibilidade à curiosa equiparação entre a capacidade puramente técnica e a atividade puramente humana, sendo que esta sempre lidou com as questões do certo e do errado. Quando a base moral da consciência do certo e do errado, mesmo que tácita, começou a desmoronar, o passo seguinte foi medir as ações sociais e políticas com critérios técnicos e produtivos que eram intrinsecamente alheios a essas esferas mais amplas da atividade humana.” In À mesa com Hitler, p. 315/317 (ARENDT, Hannah. Compreender – formação, exílio e totalitarismo – Ensaios. Belo Horizonte: UFMG/Cia. das Letras, 2008).

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